Saudades daquele futuro da infância, em que eu tinha mais de
1 metro e 60 e você ainda cavalgava por aí, com espada, coroa e o escambau.
Tudo era sempre começo. O futuro acontece primeiro em nós e quase nunca condiz
com o que vem a ser de fato. Melhor, arrisco dizer que só existe o primeiro, de
dentro, inventado e o resto é tudo presente espalhado debaixo de um monte de
árvore de natal, cercados de papai Noel, Coelhinho da Páscoa e outras mentiras
mais graves. O meu futuro era ótimo! Embora fácil demais. Aí não serve. Não é
assim que a gente aprende no teatro? Nada podia dar errado, risco zero, vitória
garantida, felicidade plena, eterna corrida pro abraço, eu tinha mais de um
metro e sessenta olha aí?! Pra você não devia ser tão bom. Cavalgar se torna
cansativo quando só se faz isso 24 horas por dia, ou mais! Meu futuro era um
dia só, um dia imenso, de 24.000 horas pelo menos. Sem falar no passado que ele
carregava em que eu atuava com o Al Pacino, a Laura Cardoso, o Jhony Depp, o
Tony Ramos, o Anthony Quinn, o Pedro Cardoso, a Audrey Hepburn, o Paulo Autran,
o Brad Pit e o Selton Melo. Fernandão não aguentava mais ser minha avó, toda
novela era isso! Eu chorava cantando “Carolina” com o Chico e o Caetano juntos
em minha homenagem. Eu tinha filhos e te dava um descanso da cavalgada. Você ia
do cavalo pra cobertura na Vieira Souto que às vezes era casa na montanha e até
Ilha deserta quando me revoltava com o mundo. Eu ajudava uma porção de gente,
tinha escola de arte, projeto na África, em Bié pra ser mais precisa, sede no
Nordeste, eu era praticamente um Deus. Pra quem já quis ser Papa. Juro! A minha
primeira decepção foi saber da impossibilidade de me tornar Papa. “Que
injusto!” esbravejei contra o machismo no auge dos meus cinco anos e meio.
Quanta memória cabe em 1 metro e 58? Se depender de volume tem alguma coisa
errada ou então sou 95% lembrança e 5% de água. Acho que fiquei desidratada de
tanto chorar. Eu devia te fazer cavalgar até hoje sabia?! Era tão melhor quando
a solidão era compartilhada! Dois vazios imensos e uma lua no meio. Agora que
sou eu e esse Austríaco louco que grita qualquer coisa dentro de mim, esse
hóspede estrangeiro que tampouco conheço e nem ao menos fala a minha língua.
Meu inglês é ruim, mas ele também nem se dá ao trabalho de tentar, continua
balbuciando esse quase alemão desesperador. O pior de tudo é estar a sós com
ele. Um pouco de idade a mais nos pés faz falta em momentos como esse. Mas
sequer completei os dedos, o resto é pose de quem sempre teve que se fazer de
maior e ainda assim é barrada em porta de boate. 17 é pouco, mas o suficiente
pra cortar um futuro em pedacinhos e espalhar pelos quatro cantos do mundo.Será
que vou ter que recolher tudo nos próximos 83 anos que me restam? “guarda tudo
depois”, não é assim que a gente aprende? Será que o estranho veio me trazer os
dois pedaços de futuro que caíram na Áustria? Será que um dia terei um Japonês
dentro de mim? Como é que está o seu cavalo numa hora dessas? Quantos presentes
cabem debaixo da nossa árvore de natal? E se eu falhar? E se alguém encontrar
parte desse futuro e se negar a me devolver? E se te acharem primeiro? Hein? Eu
me mato! O quadro cada vez mais cheio de funções e logaritmos e eu aqui com
questões tão mais intrigantes. Dá vontade de levantar e escrever os meus
problemas também. Sempre me diverti com a possibilidade que carregamos de
enlouquecer a qualquer momento. Deveríamos usa-la de fato com mais frequência.
Será que um dia serei capaz de ao menos ler isso tudo pra alguém? Será que o
farei com a mesma tranquilidade com que revelo meus devaneios papais. Acho que
não. Tenho a impressão de que já envelheci tudo antes. Agora resta colecionar
cacos e marcas, enquanto espero as pernas cansarem. O sol sem protetor dos 15
começa a fazer efeito junto com a Vodka da formatura, os Mc Lanche felizes e
saltitantes por causa do brinquedo da infância, a futura cerveja da faculdade,
as noites viradas do vestibular, das festas, das angústias, das cólicas, dos
filhos que chegam, dos filhos que não chegam, dos filhos que seguem, dos filhos
que tem filhos, do fim que tarda mais sempre aparece.
ResponderExcluircaca vc tá fera nessas ferramentas de autoficção! eu acho emocionante - porque além de se expor na medida, sempre mistura os limites realidade/ficção para produzir questionamentos da escrita sobre ela mesma e sobre o artista. por isso acho que você pode dissimular mais com a escrita, mentir!
ResponderExcluirAdorei esse futuro de infância "Tudo era sempre começo. O futuro acontece primeiro em nós e quase nunca condiz com o que vem a ser de fato. ". Me lembrei daquela carta de um personagem da peça do Mutarelli, lembra? "O que você foi quando era criança?". Vou postar!