fragmentos do trabalho de João Castilho

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Atores espalhados pelo palco, girando no próprio eixo.


   Janice vivia enamorada de seu umbigo. Não fazia muito tempo que havia dispensado dois gêmeos fortes, másculos e apaixonados para poder ficar sozinha consigo mesma e apreciar – sem uma alma para lhe roubar a paciência e o humor – aquele buraquinho perfeitamente bem delineado de sua barriga.
   No inicio, era em frente ao espelho, com uma mão a arriar a calca e a outra a levantar a blusa próxima aos seios, que a moçoila se desmanchava em elogios. Que umbiguinho divino!, gabava-se para si mesma. Que curvas primorosas! Que coisinha mais magnífica! E assim sobrevinham que issos e que aquilos até chegar a noite.
   Numa sexta-feira, ao olhar para baixo casualmente, percebeu que poderia enxergar muito mais detalhes de sua obra-prima natural se a admirasse diretamente, sem mediação. Foi o fim do espelho e o inicio do torcicolo. Janice encurvava-se cada vez mais para aproximar seu rosto do umbigo. Aos poucos, sua coluna foi se transformando num arco. Janice já não era mais capaz de ficar novamente ereta: levava as semanas, os meses, os anos enroscada em si mesma, apaixonada que estava por seu buraquinho.
   Numa outra sexta-feira, ao tentar ajeitar suas costas arqueadas, tocou sem querer os lábios em sua barriga. Muitissimo feliz com a nova possibilidade, repetiu infinitamente o mesmo gesto. Impulsionava o tronco para frente e beijava seu umbigo. Beijava beijava e ria satisfeita. Dos beijos, passou às lambidas. Gastava horas lavando seu umbigo de cuspe.
   Numa sexta-feira, de súbito, prendeu lua língua num buraco aberto pela acidez de sua saliva. Mesmo assustada, Janice amou a novidade. Com o transcorrer dos dias, das semanas, dos anos, o buraco tornou-se gradativamente maior: penetrava nele não só a língua, mas também a boca e o nariz.
    Numa derradeira sexta-feira, Janice trancou as orelhas no seu umbigo. Ao invés de tentar tirá-las, introduziu-as ainda mais, arrombando de vez seu buraquinho. De repente, zupt!, foi-se a cabeça de Janice para dentro de sua barriga. Extasiada, forçou a passagem. Os ombros entraram com uma certa dificuldade. Depois deles, o buraco se distendeu, facilitando o ingresso do resto de seu corpo. Os braços, o peito, as pernas, os pés submergiram em Janice como água escorrendo pelo ralo. O ultimo a sumir foi o piercing.
   Hoje, Janice vive feliz, inteira dentro de seu umbigo. (Stigger, Veronica. O trágico e outras comédias. Editora 7 letras, 2007)

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