fragmentos do trabalho de João Castilho

quarta-feira, 8 de maio de 2013

COMPOR OU REVELAR?


ELE – COMPOSIÇÃO DE BALEIA

Eu queria começar dizendo que eu encontrei três certezas no processo de ‘’construção’’ dessa composição: a primeira é que não há ninguém mais observador do que eu nesse mundo, só Deus, assim mesmo é páreo duro, Ele leva vantagem pela onipresença; a segunda é que não há ninguém mais transparente do que eu, só a Baía de Guanabara mesmo; e a terceira é que não há ninguém mais sonso do que eu, só mesmo vocês, audiência, público presente.

Então me foi dada ou dada por mim a função de controlar essa história. E aí que eu não to sabendo governar esse troço. Mas como eu sempre preferi a ciência e seu jogo de certezas que variam aos dramas e seu terreno baldio e frágil, eu não quero desistir antes da hora de fracassar completamente.
Vamos trabalhar, durante a travessia, com livre arbítrio (vai ter), (vai ter) destino, (vai ter) universo (vai ter), acaso, conspiração (vai ter), (vai ter) karma, coincidências (vai ter) muitas, causa e efeito, lógica (vai ter), dança de um passo depois do outro (já me faz lembrar o pensamento que tive ao olhar para os pés da Ana enquanto ela andava a minha frente naquela noite).

Até ontem eu tava pouco satisfeito com o processo de compor, então resolvi radicalizar um pouco a minha estratégia e correr atrás da ficção, já que ela tava fugindo de mim. Ou seja, peguei a barca e me propus o desafio de encontrar uma Ana, uma Inês e uma Rory e travar um pequeno diálogo banal, superficial e revelador, provocando de alguma forma uma apresentação por parte delas. Para cada uma delas eu usei uma desculpa sedutora.

A primeira que eu encontrei foi Ana, logo na primeira viagem, e olha que feliz coincidência: vocês lembram aquela faxineira maravilhosa, negona, que eu registrei daquela vez, pegando sol enquanto trabalhava? Pois é, chama-se Ana. Abordei-a, perguntei seu nome, conversamos um pouco e ela me pareceu ser bastante simpática, expansiva, autêntica, bem solar mesmo. Ficamos íntimos com pouquíssimo tempo de viagem. Dei um abraço forte nela. Aí ela me confessou que há uns meses, ela estava na casa dela e que, normalmente, apesar desse jeitão pra fora, ela reclama quando as pessoas vão abraçá-la, fica falando para soltá-la e tal. Mas sempre tem uns dias que ela fica carente e começa a agarrar todo mundo. Aí nesse dia ela tinha dormido a tarde toda e quando era 1h da manhã ela tava super acordada e inventou que àquela hora ela tinha que acordar todo mundo da casa e ficar abraçando, puxando, ficou pulando de um lado pro outro dizendo que as pessoas tinham que conversar com ela. Óbvio que os parentes ficaram meio revoltados com ela, mas no fundo eles gostam.

Depois veio Inês, era uma madame de taiêr, síndica do prédio onde mora. Ela era mais caladona, meio enigmática assim, me instigou bastante. Mas a única coisa que eu consegui descobrir dela, nas poucas palavras que trocamos é que a primeira coisa que ela diz quando acorda é: ‘’quero comer’’. Ela adora tomar café da manhã com ovos mexidos.

A mais difícil de encontrar, claro, foi Rory. Na verdade eu me contentei a achar uma Elisa, Rory não rolou. Elisa falava muito, era nova, usava óculos e era estudante, voltava do Pedro II. Praticamente abriu sua vida pra mim, eu quase não disse uma palavra e ela vomitou em cima de mim, sem pedir desculpa. Disse que tem mania de roubar as calcinhas da irmã; que foi expulsa do balé porque deu um soco na cara de uma coleguinha que dedurou ela pra professora; deixa papel de bala, chocolate, biscoitinhos e outros pequenos lixos que ela usa acumularem rumo à eternidade dentro da mochila; sempre teve o hábito de escrever diários; tem insônia; quando dorme, é com a bunda pra cima e as pernas dobradas, parece um fusquinha; tem problemas com a altura de vez em quando; e se apaixonava por todo mundo na infância e hoje em dia se faz de difícil e distanciada pra não se machucar. Eu tive que forçar uma despedida, pra ir embora.

Foram 17 viagens, das quais eu só paguei 11, o que me dá uma economia 28,80. Prejuízo neles. 6 bilhões 973 milhões 738 mil 433 trocas de olhares humano-máquina, o que inclui celulares, computadores, motores e rampas de acesso. 22 milhões de pelos esquecidos no trajeto, 60% de cabelos alisados e 40% de cabelos in natura. Cerca de 100 mil trocas de olhares entre humanos e 700 milhões de suspiros ansiosos pela chegada. 1974 tabuleiros de pães de queijo preparados para o deleite 815 mil clientes famintos. 2000 litros de mate gelado, sem limão. 14,5 minutos de atraso, à deriva, esperando a passagem de um transatlântico norueguês. 100 mil fotos postadas com a frase: ‘’ERA SÓ O QUE FALTAVA’’. 40 funcionários exemplares tentando acalmar as senhoras incapacitadas. 2.250 palavras possíveis de serem ditas na despedida. 85 mil bicicletas dobráveis. 80 por cento de coletes salva-vidas empoeirados. 100 bengalas presas entre a embarcação e o cais. E, claro, 22 anos, 22 dias, 11 horas e 55 minutos ou 695 milhões 733 mil e 900 segundos de observação de mim mesmo me afastando de mim.

Não bate palma que ela não gosta de barulho quando tá amamentando os filhotes.

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