... por mais distraídos que fôssemos, ainda era preciso buscar distrações
fragmentos do trabalho de João Castilho
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
Posso te pedir um favor?
Caro primo José,
Sei que há muito não nos falamos, acho que a última vez que nos vimos éramos ainda crianças. Acho que eu deveria ter uns doze anos e você no máximo dez. Consegui seu endereço com a tia Norma. Fiquei feliz ao saber que você conseguiu vencer na vida e que até conquistou seu próprio apartamento aí na cidade grande, como costumávamos dizer.
Soube também que você tem um cargo importante em uma grande empresa multinacional e que ainda por cima encontrou a metade da sua laranja, soube que você se casou. O mais curioso é que escrevo esta carta para um homem bem sucedido, mas quando penso em você vejo aquele menino de dez anos, para mim, na minha mente, não consigo imaginá-lo com seus quase quarenta anos. Quando em penso em você surge aquele menino com o rosto coberto de sardas e calças curtas, sempre suado de tanto que brincávamos e corríamos naquele campinho.
É engraçada essa imagem que formo desse menino vendendo veículos e morando em seu apartamento da cidade grande, todo suado e vestindo um short curtinho. A vida é tão inefável, não é mesmo? É tão imprevisível.
Me lembro que quando crianças costumávamos nos perguntar: O que você vai ser quando crescer?
Engenheiro eletrônico você dizia. Será que você se recorda qual era minha resposta? Astronauta é o que eu dizia que viria a ser. Como é obvio, não sou. Não serei. Tornei-me palhaço. Melhor dizendo a vida me tornou palhaço. Na verdade quando entrei para o circo eu almejava ser trapezista ou quem sabe um artista do escapismo. Mas a natureza não me ajudou, não tenho estrutura física para o trapézio e embora tenha muito fôlego me falta o charme que se tem que ter para um artista escapista. Sou capaz de ficar cinco minutos com a cabeça submersa na água, se você quiser quando nos encontrarmos posso fazer uma demonstração para você. Pode ser até mesmo em um balde cheio de água. Mas. enfim, eles precisavam de um palhaço.
Mas estou me delongando por demais. O motivo dessa carta, um tanto saudosa, é pedir-lhe um favor. O circo acabou, faliu, e eu não tenho para onde ir. Estou em Campinas e permanecerei aqui até o fim deste mês, mas depois pretendo ir a São Paulo em busca de algum trabalho e não tenho onde ficar. Este é o favor que te peço, que dê abrigo para mim e para minha esposa.
Estou casado a poucos meses, me casei com a mulher invisível. Ela também era do circo. Peço abrigo por pouco tempo só até um de nós conseguir um sustento para podermos pagar um aluguel.
Eu não sei o que será da minha vida, será que alguém sabe?
Olga, minha mulher, tem um dom, ela olha para qualquer pessoa e sabe como essa pessoa vai morrer. Mas apesar disso nem ela sabe o que será de sua vida. A propósito, eu morrerei de câncer de intestino, e ela de câncer de estômago. Nascemos um para o outro.
Fico por aqui, se acaso em nome dos bons tempos ou de seu generoso coração, puder me hospedar ligue-me nesse telefone. 0xx19-3213 1234.
É um telefone de recados.
Caro primo, me desculpe o tom saudoso e depressivo desta carta. Vivo um momento de grande angústia, estou muito assustado, quase sem esperanças. Te confesso isso pois quero poupar minha querida esposa, não quero que ela perceba a angústia que amargo. Eu quera ter fé, ou até mesmo um sonho. Eu queria olhar pro futuro e ver algo melhor do que um presente piorado. Queria olhar o presente e não sentir vergonha de mim. Tudo o que desejei se materializou em fracasso. Gostaria de te encontrar apenas para podermos correr naquele velho campinho. Sem preocupações, grandes ou pequenas.
Eu só queria correr, correr, correr...
Muito obrigado.
Saudade,
do seu primo Boris.
P.S. O que você foi quando era criança?
(Prólogo da peça "O que você foi quando era criança?, Lourenço Mutarelli)
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