fragmentos do trabalho de João Castilho

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Na época isso foi ontem e ainda hoje parece ter sido...

Era uma meninazinha, menor do que menina, mais miúda do que menininha, quase muda a coitadinha. É que certo dia, na verdade na época isso foi ontem e ainda hoje parece ter sido, ela contava até dez em voz alta, aguda, altíssima para uma meninazinha inha que nem ela e a mãe deu-lhe um tapa na boca. Depois ninguém sabe porque chora tanto nas aulas de matemática. A mãe era matemática, não de ofício, de alma. Exata, numérica, regrada, difícil, calculista, escalena, reta, obtusa. Mas a meninazinha quase muda ainda era feliz. Mesmo detestando matemática podia ser o que quisesse. E brincava de ser tudo, até meninozinho. Um dia a professora viu e deu-lhe um tapa na boca. Depois ninguém sabe porque chora tanto com os meninos. Mas meninazinha continuava feliz, podia ser tanta coisa ainda que fosse menina o tempo todo. Um dia, na verdade na época isso foi ontem e ainda hoje parece ter sido, resolveu ser atriz. Era uma maneira de ser tudo o que queria numa vida só. Contou ao pai, levou um tapa na boca. Depois ninguém sabe porque chora tanto no cinema. A essa altura era a menos meninazinha das irmãs e precisou começar a trabalhar. Empregou-se numa confecção de embalagens plásticas. Doía feito tapa. Mas meninazinha podia ser tanta coisa dentro da cabeça. Um dia inventou de se apaixonar, na verdade na época isso foi ontem e ainda hoje parece ter sido. Contou a uma amiga que deu-lhe um tapa na boca. "Ele não presta" disse enquanto casava com ele na semana seguinte. Outro se apaixonou por meninazinha, quase muda, quase mulher. Disse que não queria, Outro deu-lhe um tapa na boca. Depois ninguém sabe porque chora tanto em casamento. Meninazinha não queria filhos, não gostava do que o mundo fazia com as crianças, após um segundo tapa de Outro engravidou. Depois ninguém sabe porque grávida chora tanto. Um dia, na verdade na época isso foi ontem e ainda hoje parece ter sido, nasceu o filho. Meninazinha quase muda, agora mãe, já não era mais feliz, mas ainda assim não conseguiu odiar aquela coisinha tão pequena, tão miúda, quase muda que nem ela. Amou o filho. Mas quando abriu o berreiro ainda no hospital tratou de dar-lhe um tapa na boca. Ontem mesmo me perguntavam: 'Que diacho de criança é essa que não chora?'

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